30/11/2020

ARTIGO “CAPITANIA DE MINAS – 300 ANOS DE MINAS” POR SÉRGIO PESSOA DE PAULA

CAPITANIA DE MINAS – 300 ANOS DE MINAS

Sérgio Pessoa de Paula Castro

RESUMO

A criação da Capitania de Minas Gerais, em 1720, marca a origem político-administrativa do Estado de Minas Gerais. A importância maior da data, contudo, está no fato de que a formação sociocultural do mineiro é também tributária da conformação geopolítica iniciada com essa criação. Estruturas sociais ímpares que forjarão a identidade mineira nascem como reação de resistência ou resiliência ao comando da metrópole sobre a região das minas de ouro. A forma como um contingente enorme de migrantes de diversas etnias, raças e credos vai interagir e se organizar nas diferentes esferas políticas e culturais dos espaços de convivência social depende, em muitos aspectos, da relação que a administração colonial criou com essa população a partir da institucionalização da Capitania e maior presença da Coroa no território. Daí a real importância da data na história de Minas Gerais.

Palavras-chave: Capitania de Minas Gerais, Cultura, Mineiridade, formação social

INTRODUÇÃO

Fundada em 12 de setembro 1720, a Capitania de Minas Gerais completará 300 anos. A data poderia passar despercebida, pois não integra o calendário oficial de datas comemorativas estaduais, tais como o “Dia de Minas” e o “Dia dos Gerais” . Não obstante, a elevação da região à condição de Capitania marca o início da organização geopolítica e administrativa que resultou na configuração atual do Estado.
No entorno dessa organização espacial e institucional se estabeleceram as bases para o desenvolvimento da nossa cultura: os costumes, a culinária, a fé, as tradições, o modo de fazer comércio e gerir os negócios… a maioria dos traços da identidade mineira nascem a partir das dinâmicas sociais e econômicas que ocorreram dentro desse território politicamente decotado com a criação da Capitania de Minas Gerais.

FORMAÇÃO SÓCIO-CULTURAL DE MINAS GERAIS A PARTIR E EM CONSEQÜÊNCIA DA CRIAÇÃO DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS

Correspondências oficiais de 1697 relatavam a descoberta de ouro especificamente em Minas Gerais, mas segundo Pires (2013, p. 39) relatos de indígenas do litoral, ainda nos tempos da chegada de Cabral ao Brasil, sinalizavam a existência de ouro no sertão mineiro.
A notícia do ouro no final dos anos de 1690 se espalhou e agitou a Colônia e Portugal. Grandes contingentes de migrantes foram para a região buscando riqueza e glória. À esteira da corrida do ouro vieram, invariavelmente, os conflitos e disputas.
Não havia víveres suficientes para o abastecimento de tantos forasteiros e migrantes e, segundo Pinto (1979, p. 53), ao menos dois episódios de fome geral foram registrados entre 1697-1698 e entre 1700-1701.
A abundância de ouro, associada à escassez de bens, provocou incrível alta nos preços. Pinto (1979, p. 45 e 57) exemplifica a questão: na Bahia um boi usualmente custava entre 1,5 mil a 5 mil réis, passara a custar entre 8 a 10 mil réis em 1719 e nas Minas Gerais, em 1703, o boi chegou a custar 150 mil réis. O escravo, vendido em 1710 na Bahia por 100 mil, nas Minas Gerais seria vendido a 450 mil!
Em 1707, inicia-se a Guerra dos Emboabas. Paulistas reivindicavam o direito exclusivo de exploração das Minas que muitos portugueses, vindos de além-mar e do Nordeste, também desejavam explorar. Em 1709, a Metrópole criou a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro e um aparato jurídico-administrativo mais robusto para a região. Em 1714, surgem três comarcas: Rio das Mortes (São João Del Rey), Rio das Velhas (Sabará) e Vila Rica (Ouro Preto).
A Coroa tinha dificuldade de controlar e tributar o ouro extraído das minas. Novas lavras surgiam e a produção crescia, mas a arrecadação da Coroa permanecia a mesma. As apreensões de contrabandos igualavam-se, em valor, aos impostos arrecadados entre 1700 e 1713 (SIMONSEN, 2005, p. 363).
A criação de uma casa de fundição em Vila Rica era uma das medidas de controle desejadas pela Coroa. O ouro em pó que circulava nas vilas seria substituído pelo ouro em barras, marcado com o sinete real. Em 1720, a tentativa de imposição das casas de fundição desagradou a muitos habitantes da Região. As medidas significavam mais dificuldades, demoras e custos para a administração das minas.
Somadas outras imposições que já tinham encarecido a vida nos arraiais (como o monopólio do comércio de carne, cachaça e fumo), o descontentamento era geral. A Coroa manteve-se irredutível, apesar dos esforços das Câmaras Municipais para negociar outras medidas. Liderados, entre outros, por Filipe dos Santos, populares de vários recantos ameaçaram se levantar, mas foram duramente reprimidos.
Filipe dos Santos foi executado e esquartejado. Outros líderes foram presos e punidos e alguns tiveram os quarteirões de suas casas incendiadas (CALMON, 2002, p. 164-167).
Monopólios, restrições e pedágios limitando o acesso de pessoas à região das Minas foram implementados. Segundo Lima Júnior (1978, p. 37-38), a Metrópole passou a negar passaportes para que os portugueses viessem para o Brasil .
A Carta Régia de 25 de abril de 1720 aumentou o aparato repressor, trazendo para Minas uma infantaria (AQUINO et al., 2008). Era preciso restringir o espaço territorial para facilitar o controle. Assim, criou-se a Capitania de Minas Gerais e, junto dela, a comarca do Serro Frio.
A considerar apenas a intenção da Coroa Portuguesa de obter mais controle e mando sob as minas de ouro, a criação da Capitania de Minas Gerais não seria de celebração. Contudo, foi justamente a conformação de todos os povos que aqui viviam às leis e aos rigores especificamente dedicados à região das Minas Gerais que fez brotar o sentimento de pertencimento dos mineiros.
Longe do jugo da Coroa, as clivagens sociais eram mais agudas: índios nativos, paulistas bandeirantes, negros escravizados, descendentes de portugueses migrados da Bahia ou estabelecidos no sertão do São Francisco, funcionários públicos da Coroa, missionários religiosos. Todos disputavam, com maior ou menor violência, espaço para realização de seus intentos próprios, muitos deles reduzidos à simples sobrevivência no espaço pouco aculturado das Minas Gerais. Esse contexto resultava em mais segregação e competição do que em integração.
Entender esses atores e como a Capitania de Minas passou a sujeitar seus contextos de vida é essencial para a compreensão de Minas Gerais como o espaço de construção de nossa identidade cultural.
Personagens e eventos emblemáticos surgiram na cena colonial mineira, flexibilizando a rigidez da estrutura tipicamente patriarcal, escravagista, eurocêntrica e rural das colônias. As clivagens e diferenças sociais ainda existiam, mas se elasteceram.
O povoamento nas zonas de mineração se dá em estrutura mais urbana. Vilas e cidades vão surgindo à medida que o fluxo de riquezas atrai comerciantes de todo gênero de bens e serviços. A corrida pela extração da maior quantidade de ouro no menor período possível de tempo exige a terceirização dos mecanismos de subsistência, aquecendo o comércio, ávido por receber pagamentos em ouro.
Aquele nascido na colônia e fixado no sertão mineiro, ao longo das margens do rio São Francisco, terá uma oportunidade ímpar de cultivar sua fazenda para fornecer gado e víveres aos consumidores das vorazes vilas mineradoras. A coroa deseja abastecer as minas sem abrir caminhos para a Bahia:
De acordo com a Carta Régia de 7 de maio de 1703, ficou estipulado que se dessem como sesmarias as terras próximas das minas, com a condição de que aqueles que as recebessem, colocassem nelas um curral para criação de gado. O objetivo era abastecer as minas sem que fosse preciso abrir portas para a Bahia, impedindo, assim, o descaminho do ouro. (PAULA, 1999).
O “Gerazeiro” nasce dessa oportunidade de integração que a dependência das vilas urbanizadas pela mineração tem com o rural do sertão, criador de gado e cultivador de frutas, verduras e legumes para subsistência das minas.
A atividade minerária exige conhecimento específico e oferece muitos riscos. Escravos mineiros especializados são trazidos da Costa da Mina, na África. Ofício extenuante, o simples recurso à coerção física parece não ser suficiente para que se obtenha o melhor desempenho deles.
A cooptação da mão de obra por meio da concessão de alforrias é muito ampla nas Minas Gerais (MARQUESE, Mar. 2006, p. 4). Surgem na cena mineira negros donos de minas e de outros escravos (MARQUESE, Mar. 2006, p. 6), expondo de forma mais vívida as contradições do discurso civilizatório e religioso de que se serviam os portugueses para justificar a escravidão.
Os jovens solteiros portugueses que vêm tentar a sorte não encontram noivas fidalgas pelas muitas proibições de acesso às Minas Gerais. Crescem as alforrias de mulheres negras unidas a senhores de escravos. Exemplo emblemático é o de Chica da Silva e João Fernandes em Diamantina.
A constante presença de termos indígenas na toponímia dos rios, distritos, serras e cidades de Minas Gerais permite supor um papel muito mais ativo do índio do que tradicionalmente é narrado. Não seria fortuito que “Minas Gerais tenha sido batizada desde as primeiras horas de Minas dos Cataguases”, afirmam (RESENDE; LANGFUR, 2007, p. 22).
Embora admitisse a escravidão negra, a Coroa legislava pela liberdade dos indígenas. É praticamente desconhecido o fato de que índios escravizados acionavam a justiça colonial para se verem livres. Eram as ditas “ações de liberdade”. O uso do recurso por escravos com origem indígena menos notória ou documentada mobilizavam juntas de autoridades para deliberar sobre seu direito à liberdade ou não (RESENDE; LANGFUR, 2007, p. 21).
CONCLUSÃO

Todas essas peculiaridades se relacionam com o esforço da Coroa em centralizar sua administração após a criação da Capitania de Minas Gerais. É evidente que os habitantes de Minas Gerais não surgiram quando a Capitania surgiu, mas a interação dos povos que já habitavam nossas serras, vales e sertões vai se dar em um patamar diferente a partir dela. É dentro dessa conformação geopolítica que um caldeirão de confusas e ricas confluências culturais começa a se amalgamar e dar liga, formando uma identidade própria, forjada com muitos conflitos e arranjos produtivos e sociais aguerridos induzidos pelos sonhos de glória e riqueza ofertada pelo ouro e pelo diamante, mas também deitada na fé, no queijo, no café, no sertão, na miragem das serras e currais e em uma profusão de cores, sabores e sons que hoje identificamos como a típica mineiridade.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade Brasileira: Uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, v. II, 2008. 924 p.

BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Saterb, 1971.

CALMON, Pedro. As Agitações Nativistas: Nas Minas. In: CALMON, Pedro. História da Civilização Brasileira. Brasília: Senado Federal – Conselho Editorial, 2002. 332 p. cap. XV, p. 153. (Biblioteca Básica Brasileira).

Estudos Críticos – Toponímia. Album Chorographico Municipal do Estado de Minas Gerais. 1927. Disponível em: http://www.albumchorographico1927.com.br/texto/estudo-critico-toponimia. Acesso em: 30 Nov. 2019.

LIMA JÚNIOR, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia e EDUSP, v. 51, 1978. (Reconquista do Brasil)

MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo. n.74 p.107-123, Mar. 2006. Disponível em:http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 30 Nov. 2019.

PAULA, Tanya Pitanguy de. Abrindo os baús: tradições e valores das Minas e das Gerais. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português: Uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Nacional, 1979.

PIRES, Maria Coeli Simões. Memória e arte do queijo do Serro: o saber sobre a mesa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

RESENDE, Maria Leônia Chaves de; LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos índios nos sertões e nas vilas de El-Rei. Tempo. Niterói, V.12, n.23, p.5-22, 2007. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-77042007000200002. Acesso em: 30 Nov. 2019.

SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil: 1500-1820. Brasília: Senado Federal – Secretaria Especial de Editoração e Publicação, v. 34, 2005. 589 p. (Edições do Senado).
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