Capitania das Minas Gerais - IHGMG

27/10/2020

Levante de 1720 e a criação da Capitania

No dia 2 de dezembro de 2020 Minas Gerais completa 300 anos da criação da Capitania de Minas do Ouro, com autonomia administrativa e governo local, separada da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, que integrava desde 1709, data em que o governo português a retirou da Capitania do Rio de Janeiro. O ato de criação, em Alvará  assinado pelo rei de Portugal, dom João V (1707/1750), por solicitação do Conselho Ultramarino, órgão superior da gestão das colônias, era uma tentativa de pacificar e organizar o governo  português na região das “Minas do Ouro”, logo após a sublevação que ocorrera neste mesmo ano, quanto Portugal   busca tornar mais regular e efetiva a cobrança do imposto sobre o ouro com a implantação das casas de fundição, onde um quinto do ouro era separado a título de tributo,   cobrado dos mineradores,  proibindo-se a circulação do ouro em pó, entre outras medidas relativas ao controle do comércio e entrada de gêneros alimentícios e outras mercadorias. Com a Capitania, Portugal procura estabelecer um aparato administrativo, jurídico e militar, evitando novas resistências e insurreições e maior rigor e regularidade na cobrança do quinto do ouro.

A rebeldia mineira com a sublevação de 1720 é vista pelos historiadores como a primeira demonstração de insatisfação  com o regime colonial português e de surgimento do sentimento nativista na nação brasileira. Reações e insubmissões ocorrerão por todo o século XVIII, em várias cidades, representando um traço marcante da História Colonial mineira, sempre destacado pelos historiadores que se dedicaram ao períodoiHH. Historiadores dos primeiros anos das Minas do Ouro relatam uma sociedade caótica, desatinada e irreversivelmente rebelde, como mostram as sucessivas sublevações, como em 1717 e 1718 em Catas Altas, e entre 1717 e 1718 em Pitangui, para onde tinham ido os paulistas fugidos do conflito emboaba, em 1736 com os chamados Motins do Sertão, entre 1761 e 1783 nas duas Inconfidências de Curvelo e, em 1775, em Sabará. Em 1789 ocorre a Inconfidência Mineira, a de maior repercussão, que enforcou Tiradentes e condenou seus principais líderes a degredos na África.

Sociedade rebelde e irrequieta por sua própria origem e constituição, resultante da ocupação veloz e desordenada do território interior da Colônia na corrida pelo ouro, por aventureiros de variadas origem e espécie, já em 20 anos a região das minas já contava com mais de 20 núcleos urbanos de porte, formados nos primeiros momento da busca de ouro e pedras preciosas, a princípio meros arraiais pobres mas logo cidades de maior porte.  Mas ainda com estamentos sociais em formação, economia predatória e sem regulação, governos e normas de convivência social ainda incipientes. Nos anos de 1707 e 1708 dá-se a Guerra dos Emboabas, em que os paulistas, primeiros ocupantes do território, se opõem a portugueses e outros forasteiros que chegavam em busca do enriquecimento e competiam na áreas de mineração. Ocorreram verdadeiros combates e morticínios iniciando em Caeté, passando por Santa Luzia e Sabará, Cachoeira do Campo e Vila Rica e, por fim, na Comarca do Rio das Mortes, em São José del-Rei, Hoje Tiradentes, e em São João del-Rei. O governo português cria então a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em 1709, e nomeia governador, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, experiente e conciliador, que consegue uma breve pacificação da Colônia. Em 1711, em outra medida destinada a  reduzir conflitos e estabelecer maior controle administrativo,  cria  as primeiras três Vilas, Vila Rica, Ribeirão do Carmo (Mariana) e Sabará.

Mas impunha-se a necessidade de disciplinar a cobrança do imposto, o quinto do ouro extraído e que teria que ser “quintado” nas casas de fundição, que seriam instaladas em várias cidades. Nomeia com esta missão, em 14 de setembro de 1717, para o governo da Capitania, a Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, 3º conde de Assumar e 1º marquês de Alorna, funcionário graduado do governo português. Assumar instala-se em Mariana, após tomar posse em São Paulo, e ocupa o casarão anexo à Igreja de São Francisco, até hoje conhecido como Palácio de Assumar, edificação contígua à Igreja de São Francisco, na Praça Minas Gerais. Trazia como principal missão organizar o governo colonial  e, principalmente,  disciplinar a cobrança do quinto do ouro, a ser  pago por todos os mineradores que  realizavam a extração do ouro.

Assumar encontrou forte reação com insurreições em Ribeirão do Carmo e Vila Rica, chegando a ameaçar sua própria vida. Grupos armados, declarados revoltosos, vindos dos morros, em sua maioria mineradores e seus empregados, saíram às ruas, amedrontando a população.  Invadiram e incendiaram a residência do ouvidor-geral, figura detestada pela comunidade que, por pouco, escapou de linchamento.  Em documento extenso, com 15 itens, em que falavam pelo povo de Ribeirão do Carmo  e Vila Rica, os revoltosos pediram a suspensão das  casas de fundição,  onde o ouro era transformado em barras e retirado o quinto como imposto devido ao rei,  que “não fosse consentido em contrato novo algum, que “não fosse consentido que se pague o registro da Borda do Campo pelo desconforto que dá para quaisquer cargas”, que “as companhias de Dragões comam a custo de seus soldos e não à custa dos povos” e varias outras reivindicações relativas aos contratadores e os dízimos do comércio, de gêneros e mercadorias e  frear abusos cometidos pela Câmara Municipal criada em 1711 (“História de Minas Gerais”, 1961, João Camillo de Oliveira Torres). Em Mariana, Assumar fingiu concordância, chegou a assinar o documento de reivindicações mas retirou-se para Vila Rica, onde armou sua resistência.

Em Vila Rica instalou-se em antigo casarão, hoje denominado de Palácio Velho, residência de Henrique Dias, de que hoje só restam alguns paredões em ruinas, em região que tem esse nome, próximo ao Bairro de Antônio Dias. O Palácio dos Governadores, hoje pertencente à Escola de Minas da UFOP, só foi construído a partir de  1747. Vila Rica tornou-se então a capital da Capitania e o Palácio da Praça Tiradentes sediou os governos mineiros, nos regimes colonial,  imperial e parte do republicano, até  1897, quando a capital mudou para a nova capital,  Belo Horizonte.

Agindo com rigor, organizando sua reação, sentindo-se seguro, Assumar determinou a prisão dos líderes do levante, inclusive os mineradores mais importantes das minas.  Prendeu os protagonistas do levante. Fechou as entradas de Vila Rica. Queimou propriedades de Pascoal da Silva Guimarães, português e um dos homens mais ricos e principal líder da rebeldia, que já se destacara na Guerra dos Emboabas.  Dono de várias minas e comerciante, controlava vastas extensões ao longo da Serra do Ouro Preto, de Vila Rica até Ribeirão do Carmo, onde também residiam centenas de mineradores nos povoados nascentes. Mais inteligente, líder natural, Pascoal é tido, nas interpretações mais atuais do episódio, com o chefe maior do levante. Assumar expulsou os padres solidários com o levante e, para reprimir manifestações,  mandou incendiar  vasta região de mineração, na Serra do Ouro Preto, até hoje chamado Morro da Queimada, onde ainda  podem ser vistos vestígios de escavações,   paredões de pedra de antigas casas, reminiscências de “mundeos” para lavagem e separação do ouro  e muitas entradas de minas e seus sarilhos, usados para ventilação de tuneis, especialmente nos Morros de Santo Antônio e  Gogô, já em Mariana. Foram incendiadas as propriedades de Pascoal, que foi preso e enviado para Portugal, onde representou contra Assumar, acusando-o pela queima de suas propriedades e de excessivo rigor na repressão.

Felipe dos Santos Freire, português vivendo há quase dez anos na região das minas, onde começou como tropeiro e tornou-se comerciante, tentou, em Cachoeira do Campo, armar uma reação contra o Conde de Assumar e em favor de Pascoal da Silva Guimarães. Preso, foi executado sumariamente em Vila Rica quando deveria ter sido julgado por uma Junta da Justiça em razão de sua condição de homem branco e livre. Sua execução ocorreu em ato público, com Assumar reunindo o povo em Vila Rica para assistir ao seu suplício.  Há pontos controversos sobre sua prisão e execução e mesmo sobre sua liderança no movimento. Mas a repercussão do levante e a memória de sua execução pública o tornou um “mito” e passou à história brasileira como herói nacional e revolucionário em favor da liberdade e contra a tirania da gestão colonial portuguesa. O episódio é abordado por todos os historiadores brasileiros e memorialistas mineiros, que expõem várias controvérsias sobre os acontecimentos de 1720, Felipe dos Santos e seu suplício e atuação e a liderança de Pascoal da Silva Guimarães.

Assumar permaneceu em Vila Rica até setembro de 1721, quando retornou a Portugal e responde a processo sobre os acontecimentos em Minas, sendo substituído pelo governador Lourenço de Almeida. A presença de Assumar se tornara difícil em função dos acontecimentos e as inimizades que despertara com a repressão aos sublevados. Permaneceu por vários anos em ostracismo até que, em 1944, foi nomeado vice-rei das Índias, onde ficou até 1751. Morreu em Cascais, Portugal, em 1756, em condições financeiras difíceis embora tenha prestado vários serviços à Coroa, como afirma em cartas ao rei, dom João V.

Em cartas enviadas a amigos, Assumar demonstra consciência de que tinha agido com rigor nas procura explicar sua conduta dizendo que se viu obrigado a “proceder sumariamente ao castigo” dos líderes da insurreição, como o suplício público de Felipe dos Santos e a prisão de outros sediosos, mesmo alguns mais abastados, mineradores e comerciantes da região. Tentou justificar-se em cartas que enviou ao ouvidor de Vila Rica e ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, Ayres Saldanha Albuquerque e Noronha. Na carta que envia ao ouvidor, nos informa a historiadora Heloisa Starling (“ser republicano no Brasil – a história de uma tradição esquecida”, 2018), faz uma “revelação bombástica: a pauta de reivindicações da Sedição de Vila Rica escondia um projeto de república. Tomava corpo entre os rebelde de Vila Rica a auto-percepção de que poderiam governar a si mesmos  à sua própria maneira, escreveu Assumar, usando o termo república para nomear a engrenagem que assegurava a marcha da sedição”.

A Ayres Saldanha, após discorrer sobre a insurreição e justificar o rigor da repressão, Assumar afirma que “estava em preparação em Vila Rica um projeto de república, inspirado no modelo das cidades italianas, especialmente em Veneza, do final do século XV e início do século XV”.  Escreveu Assumar que “segundo o que se vai averiguando, a república que os cabeças queriam formar de 24 pessoas era com o fim de se dar as mãos com esta cidade (Rio de Janeiro) e levantarem-se para fazerem porto franco aos estrangeiros para que el-rei os não castigasse evitando-lhe os portos do mar e o comércio”. Adverte a historiadora que o conde, com o objetivo de defender-se, possa ter exagerado no uso do termo república que, à época, “dispunha de um coeficiente dinâmico e seu campo semântico se mantinha em pleno movimento nas circunstâncias da conjuntura política da colônia”. Levanta ainda a hipótese de que a ideia de república podem ter surgido em Vila Rica nos primeiros anos do século XVII, aportando “na região graças à migração de colonos pernambucanos que debandaram para Minas”. E que “alguns deles também deviam estar empenhadíssimos para tentar escapar do acerto de contas político e da repressão régia desencadeada pelo governador de Pernambuco, Felix Pacheco, em 1712, em represália às duas sedições civis que levantaram a Capitania, entre 1710 e 1711”.

Atribui-se ao conde de Assumar o “Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720 – No fim do qual se expendem as razões que o   Excelentíssimo Senhor Conde-General teve para proceder sumariamente ao castigo”, publicado anos depois em Portugal. Texto anônimo mas várias circunstâncias e análises mostram que o texto teria sido elaborado a seis mãos, por Assumar e dois jesuítas que o acompanharam na estada em Minas, José Mascarenhas e Antônio Correia. Trata-se de uma peça política, de elaboração erudita, que procura explicar e justificar a repressão adotada pelo Conde contra os revoltosos de Vila Rica e Ribeirão do Carmo.

Em 1994, a historiadora Laura de Mello e Souza publica estudo crítico do Discurso na Coleção Mineirana da Fundação João Pinheiro. O documento viera a público, anteriormente, por duas vezes, divulgado entre 5 e 19 de fevereiro de 1898 no Minas Gerais, órgão da Imprensa Oficial de Minas Gerais, com comentários de José Pedro Xavier da Veiga, então diretor do Arquivo Público Mineiro em Ouro Preto. Xavier revela que o documento fora adquirido em Lisboa, em 1895, durante leilão da biblioteca do conde Linhares, quando se tornou conhecido.  O texto tem duas partes: a primeira descreve os episódios relativos ao Levante de Vila Rica e a execução de Felipe dos Santos e, o segundo, justifica a necessidade da execução, sem julgamento e procura explicá-la.

O “Discurso” é fonte de conhecimento de vários aspectos da vida colonial mineira nos primeiros momentos da ocupação territorial, constituindo, segundo Laura de Mello e Souza, um dos mais importantes documentos do século XVII luso-brasileiro, matriz de todas as narrativas sobre o levante como também “para todos os que se interessam pelos aspectos políticos e sociais de nossa história”. O “Discurso”, longo e com elevada qualidade terminológica, também gerou muitas análises, estudos e controvérsias na literatura histórica brasileira.

Um trecho, em especial, sobre a Minas nascente e os mineiros, é amplamente lembrado e publicado: “Das minas e seus moradores bastava dizer (…) que é habitada de gente intratável, sem domicílio, e ainda que está em constante movimento, é menos inconstante do que os seus costumes: os dias nunca amanhecem serenos: o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. Eu, contudo,  reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de perturbações que nela se veem, acrescentarei que parece que a terra evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens  os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e amotinada lá por dentro é como no inferno”. Laura Mello e Souza conclui sua análise crítica dizendo que “se procure igualmente ver no Discurso, em vez de um “libelo monstruoso”, um interessante tratado político da época, manifestação peculiar de um universo que, como o luso-brasileiro, não foi pródigo em textos do gênero”. Nasce a Capitania das Minas do Ouro como consequência destes tempos conflitivos e tempestuosos e que, neste 2 de dezembro de 2020 completa 300 anos. E que convida a uma reflexão histórica, analítica e crítica do tricentenário do surgimento de Minas Gerais como unidade territorial, política e administrativa.

Mauro Werkema

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